Colunistas

Artigo

Affonso Solano | Dinossauros são legais

“Acredito que todo jovem seja fascinado por tubarões ou dinossauros” – Peter Benchley, autor de Tubarão

20.06.2015, às 13H21.

Todos temos nossas Moby Dicks. Fantasmas que nos assombram por uma vida, sussurrando do fundo da consciência aquele assunto pendente e talvez insolúvel que aos poucos consome nossa sanidade. E tal qual a obsessão de Ismael, minha Moby Dick também consiste em um animal; mais especificamente um quadro com um animal desenhado. Um quadro que me persegue há 28 anos.

None

Aos 5 anos de idade, Affonsinho e Dona Eneida tinham um ritual: sempre que a criança visitava a avó querida, esta o levava até a padaria do outro lado da rua para que juntos pudessem escolher qual doce consumir após o almoço. Como toda boa aventura, o caminho era repleto de perigos e maravilhas, incluindo “o portão com o cachorro raivoso” e “o quintal do vizinho que tinha uma criação de tartarugas” – mas havia um lugar especial ao lado da padaria que marcaria Affonsinho mais do que todos os outros: a loja de quadros.

Porque ali, posicionado na estante mais alta atrás do balcão, se encontrava um portal mágico.

A pintura retratava uma praia carioca, ensolarada e repleta de banhistas. Contrastando com o cotidiano da cena de verão, uma criatura de tamanho colossal escapava do mar para as areias quentes, criando sulcos profundos no caminhar estrondoso. Pais e mães gritavam em terror pelos filhos, boquiabertos sob a sombra da pesada besta. Vendedores ambulantes abandonavam suas mercadorias, atropelando senhoras enquanto corriam para longe da água. O animal, entretanto, ignorava o apavorado formigueiro humano, balançando o pescoço e a cauda comprida a cada passada destruidora.

“O que é aquele bicho, vovó?”, Affonsinho perguntou, preso naquele instante fantástico que o autor fabricara.

“Um dinossauro, meu querido”.

A loja de quadros se tornou minha parada favorita dali em diante. Mais do que o portão do cachorro nervoso, as tartarugas do vizinho ou até mesmo os doces da padaria.

None

Até que um dia, infelizmente, o quadro desapareceu da estante. “Foi vendido”, explicou o vendedor, com o inclinar de cabeça que reservamos para as crianças desapontadas. E ainda que reencontrar esta pintura original tenha se tornado minha “Moby Dick”, como disse no início do texto, encará-la por alguns minutos sempre que visitava minha avó me fez entender duas coisas que iriam mudar para sempre minha vida: que quando eu crescesse iria de alguma forma aprender a criar momentos como aquele... e que dinossauros eram muito legais.

Ambos seguiram entrelaçados, moldando os valores artísticos que mais tarde se tornariam minha profissão. Meus primeiros desenhos se resumiam a tiranossauros e saurópodes se enfrentando em florestas ancestrais, ao passo que as brincadeiras de Lego e Comandos em Ação muitas vezes narravam perigosas aventuras espaço-temporais ao período Cretáceo (ou mesmo o dia-a-dia de um familiar parque de dinossauros).

O conceito não se resume ao meu exemplo, é claro. Creio sejamos todos, por natureza, fascinados por “monstros” – seja pela lembrança da fatalidade que nos espreita ou enquanto metáforas de nossos medos interiores. Dinossauros nos lembram de que chegamos a este planeta há relativamente pouco tempo, e que talvez nossa estadia também seja temporária. Vislumbrar um conjunto de fósseis é se curvar perante nossa ignorância, aceitando o quanto da história da nossa própria casa desconhecemos. E quando crianças – e ainda livres do trauma da inferiorização – somos capazes de inverter esta noção de insignificância para algo fortalecedor, acendendo a fagulha que nos impulsionará na jornada do saber.

Sim, dinossauros são muito legais.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.