Todos temos nossas Moby Dicks. Fantasmas que nos assombram por uma vida, sussurrando do fundo da consciência aquele assunto pendente e talvez insolúvel que aos poucos consome nossa sanidade. E tal qual a obsessão de Ismael, minha Moby Dick também consiste em um animal; mais especificamente um quadro com um animal desenhado. Um quadro que me persegue há 28 anos.
Aos 5 anos de idade, Affonsinho e Dona Eneida tinham um ritual: sempre que a criança visitava a avó querida, esta o levava até a padaria do outro lado da rua para que juntos pudessem escolher qual doce consumir após o almoço. Como toda boa aventura, o caminho era repleto de perigos e maravilhas, incluindo “o portão com o cachorro raivoso” e “o quintal do vizinho que tinha uma criação de tartarugas” – mas havia um lugar especial ao lado da padaria que marcaria Affonsinho mais do que todos os outros: a loja de quadros.
Porque ali, posicionado na estante mais alta atrás do balcão, se encontrava um portal mágico.
A pintura retratava uma praia carioca, ensolarada e repleta de banhistas. Contrastando com o cotidiano da cena de verão, uma criatura de tamanho colossal escapava do mar para as areias quentes, criando sulcos profundos no caminhar estrondoso. Pais e mães gritavam em terror pelos filhos, boquiabertos sob a sombra da pesada besta. Vendedores ambulantes abandonavam suas mercadorias, atropelando senhoras enquanto corriam para longe da água. O animal, entretanto, ignorava o apavorado formigueiro humano, balançando o pescoço e a cauda comprida a cada passada destruidora.
“O que é aquele bicho, vovó?”, Affonsinho perguntou, preso naquele instante fantástico que o autor fabricara.
“Um dinossauro, meu querido”.
A loja de quadros se tornou minha parada favorita dali em diante. Mais do que o portão do cachorro nervoso, as tartarugas do vizinho ou até mesmo os doces da padaria.
Até que um dia, infelizmente, o quadro desapareceu da estante. “Foi vendido”, explicou o vendedor, com o inclinar de cabeça que reservamos para as crianças desapontadas. E ainda que reencontrar esta pintura original tenha se tornado minha “Moby Dick”, como disse no início do texto, encará-la por alguns minutos sempre que visitava minha avó me fez entender duas coisas que iriam mudar para sempre minha vida: que quando eu crescesse iria de alguma forma aprender a criar momentos como aquele... e que dinossauros eram muito legais.
Ambos seguiram entrelaçados, moldando os valores artísticos que mais tarde se tornariam minha profissão. Meus primeiros desenhos se resumiam a tiranossauros e saurópodes se enfrentando em florestas ancestrais, ao passo que as brincadeiras de Lego e Comandos em Ação muitas vezes narravam perigosas aventuras espaço-temporais ao período Cretáceo (ou mesmo o dia-a-dia de um familiar parque de dinossauros).
O conceito não se resume ao meu exemplo, é claro. Creio sejamos todos, por natureza, fascinados por “monstros” – seja pela lembrança da fatalidade que nos espreita ou enquanto metáforas de nossos medos interiores. Dinossauros nos lembram de que chegamos a este planeta há relativamente pouco tempo, e que talvez nossa estadia também seja temporária. Vislumbrar um conjunto de fósseis é se curvar perante nossa ignorância, aceitando o quanto da história da nossa própria casa desconhecemos. E quando crianças – e ainda livres do trauma da inferiorização – somos capazes de inverter esta noção de insignificância para algo fortalecedor, acendendo a fagulha que nos impulsionará na jornada do saber.
Sim, dinossauros são muito legais.