Colunistas

Artigo

Affonso Solano | A viúva e o bruxo

Enterrar os mortos sob a terra é como estender um tapete de boas-vindas para monstros. – Jacques de Villepin, Academia Oxenfurt

02.09.2015, às 00H16.
Atualizada em 04.11.2016, ÀS 14H00

Geralt ouviu os cachorros selvagens ainda na trilha para o cemitério. Precavido, o bruxo desmontou do cavalo e prosseguiu a pé – despencar de uma montaria assustada era coisa de heróis de fim de semana, algo que os moradores da região não precisavam.

None

Eles precisavam de um profissional.

O caçador de monstros alcançou o cemitério. A pouca luz que vencia as árvores do bosque escorria sobre a capela abandonada e as lápides do jardim como a pintura de um artista meticuloso, desafiando o cenário lúgubre com tons de amarelo. Os corpos recém-desenterrados das covas entregaram o porquê da presença dos cães, que rosnaram contra a presença do homem de cabelos brancos – lâminas não seriam necessárias, no entanto; com um sinal da mão direita, Geralt manifestou uma labareda que chamuscou as criaturas e os afugentou aos ganidos.

None

Carniçais cavaram as covas e o cheiro atraiu os cachorros”, o bruxo pensou, examinando os túmulos violados. “Mas carniçais e cachorros não sequestram crianças”, concluiu, recordando o motivo de sua presença ali.

Recorrendo aos sentidos sobre-humanos, Geralt farejou o ar. Ali, entre o fedor dos cadáveres e o pelo queimado dos cães havia algo distinto. Antigo. O homem acompanhou o odor pela lateral da capela, saltou a mureta dos fundos do cemitério e penetrou de volta na floresta, perseguindo o rastro invisível. Pedras, galhos traiçoeiros e uma ponte partida depois, uma solitária cabana de madeira surgiu na mata fechada, acusando a origem do cheiro.

Leia todas as colunas de Affonso Solano

De olhos e ouvidos atentos, o caçador de monstros abriu a porta, certificando-se de que a residência se encontrava vazia. Parte do teto e parede oeste havia ruído há tempos, permitindo que o matagal invadisse a decrépita estrutura. “O que quer que seja, adotou este lugar como covil e sabe usar ferramentas”, Geralt pensou, adentrando o recinto e notando a panela sobre um fogão improvisado. Com um pedaço de pau, remexeu o conteúdo do recipiente. “Um fêmur” ele lamentou, identificando o objeto branco no cozido. “Um fêmur de criança. Merda”.

Um trio de crânios jazia ao lado do fogão, dispostos em círculo. “É uma Velha-de-Covas”, o bruxo concluiu, identificando finalmente o monstro responsável por tudo aquilo. “Com o passar do tempo, ganhou confiança, cansou de competir com os carniçais e decidiu começar a sequestrar crianças da vila”.

Com os crânios seguros nas mãos, Geralt deixou a cabana. “Oh, isso vai irritá-la”, pensou, formulando a estratégia e calculando quantas horas até o anoitecer. Enquanto retornava pela trilha de antes, ponderou sobre como a brutalidade da Grande Guerra havia preparado o terreno – literalmente – para que os necrófagos se proliferassem pelos Reinos do Norte, criando a cada campanha campos repletos de cadáveres apodrecendo ao sol.

De volta ao cemitério, o bruxo adentrou a capela e posicionou os crânios sobre o púlpito de pedra. A seguir, acendeu as velas com um feitiço rápido, pôs-se de joelhos e mergulhou em meditação.

O vento uivou.

Leia todas as colunas de Affonso Solano

Geralt abriu os olhos. Sentiu que precisava urinar, mas a vontade teria que aguardar o desfecho da missão. Lá fora, a lua afugentara o dia e agora reinava absoluta no céu. Banhada pela luz branca, uma figura curvada encarava o caçador de monstros – com os cabelos ensebados grudados ao rosto cadavérico, a Velha-de-Covas era a caricatura macabra da humanidade, balançando a barriga flácida e os seios murchos no caminhar lânguido que lhe era típico.

Rrrobô meus crânio, ladrão...”, a coisa sussurrou entre os dentes podres. “Vai cavá outros procê, vai cavá...

Erguendo-se, o homem caminhou para fora da capela e desembainhou a espada de prata. A Velha-de-Covas recuou e rosnou ao vislumbrar a lâmina mágica, ciente de que representava seu possível fim. Geralt, contudo, sabia que ela não fugiria do confronto; para bruxos, monstros eram tão previsíveis quanto a chuva era para os druidas.

None

A criatura avançou, mas o homem de cabelos brancos invocou uma onda de fogo que a abraçou em cheio. Desorientada, a Velha-de-Covas tropeçou e desferiu golpes às cegas, mas Geralt já havia saltado para o lado e – com um gesto da mão desarmada – manifestado um círculo mágico ao redor dos combatentes. Com a força drenada pelo feitiço e a pele esturricada, o monstro pouco fez para evitar a espada que finalmente lhe trespassou o peito.

Limpando a lâmina, o bruxo encarou o corpo grotesco da Velha-de-Covas – agora apenas outro cadáver do cemitério. Ainda teria que lhe remover a cabeça para apresenta-la ao contratante, mas a ação podia esperar alguns minutos; Geralt precisava mesmo esvaziar a bexiga.

Uma ação mundana frente a tudo isso”, ele pensou, filosofando sobre o que a palavra realmente significava para alguém que exterminava monstros devoradores de gente em troca de moedas.

- Solano

--------------------

Recado aos leitores:

Neste final de semana (dias 4, 5 e 6 de setembro) convido vocês para o lançamento do 2º volume da série Espadachim de Carvão na XVII Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro – confira aqui [ http://espadachimdecarvao.com/bienal-do-livro-2015-o-espadachim-de-carvao-e-as-pontes-de-puzur/ ] minha agenda no evento. Nos vemos lá! :)

Leia todas as colunas de Affonso Solano

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.