Geralt ouviu os cachorros selvagens ainda na trilha para o cemitério. Precavido, o bruxo desmontou do cavalo e prosseguiu a pé – despencar de uma montaria assustada era coisa de heróis de fim de semana, algo que os moradores da região não precisavam.
Eles precisavam de um profissional.
O caçador de monstros alcançou o cemitério. A pouca luz que vencia as árvores do bosque escorria sobre a capela abandonada e as lápides do jardim como a pintura de um artista meticuloso, desafiando o cenário lúgubre com tons de amarelo. Os corpos recém-desenterrados das covas entregaram o porquê da presença dos cães, que rosnaram contra a presença do homem de cabelos brancos – lâminas não seriam necessárias, no entanto; com um sinal da mão direita, Geralt manifestou uma labareda que chamuscou as criaturas e os afugentou aos ganidos.
“Carniçais cavaram as covas e o cheiro atraiu os cachorros”, o bruxo pensou, examinando os túmulos violados. “Mas carniçais e cachorros não sequestram crianças”, concluiu, recordando o motivo de sua presença ali.
Recorrendo aos sentidos sobre-humanos, Geralt farejou o ar. Ali, entre o fedor dos cadáveres e o pelo queimado dos cães havia algo distinto. Antigo. O homem acompanhou o odor pela lateral da capela, saltou a mureta dos fundos do cemitério e penetrou de volta na floresta, perseguindo o rastro invisível. Pedras, galhos traiçoeiros e uma ponte partida depois, uma solitária cabana de madeira surgiu na mata fechada, acusando a origem do cheiro.
Leia todas as colunas de Affonso Solano
De olhos e ouvidos atentos, o caçador de monstros abriu a porta, certificando-se de que a residência se encontrava vazia. Parte do teto e parede oeste havia ruído há tempos, permitindo que o matagal invadisse a decrépita estrutura. “O que quer que seja, adotou este lugar como covil e sabe usar ferramentas”, Geralt pensou, adentrando o recinto e notando a panela sobre um fogão improvisado. Com um pedaço de pau, remexeu o conteúdo do recipiente. “Um fêmur” ele lamentou, identificando o objeto branco no cozido. “Um fêmur de criança. Merda”.
Um trio de crânios jazia ao lado do fogão, dispostos em círculo. “É uma Velha-de-Covas”, o bruxo concluiu, identificando finalmente o monstro responsável por tudo aquilo. “Com o passar do tempo, ganhou confiança, cansou de competir com os carniçais e decidiu começar a sequestrar crianças da vila”.
Com os crânios seguros nas mãos, Geralt deixou a cabana. “Oh, isso vai irritá-la”, pensou, formulando a estratégia e calculando quantas horas até o anoitecer. Enquanto retornava pela trilha de antes, ponderou sobre como a brutalidade da Grande Guerra havia preparado o terreno – literalmente – para que os necrófagos se proliferassem pelos Reinos do Norte, criando a cada campanha campos repletos de cadáveres apodrecendo ao sol.
De volta ao cemitério, o bruxo adentrou a capela e posicionou os crânios sobre o púlpito de pedra. A seguir, acendeu as velas com um feitiço rápido, pôs-se de joelhos e mergulhou em meditação.
O vento uivou.
Leia todas as colunas de Affonso Solano
Geralt abriu os olhos. Sentiu que precisava urinar, mas a vontade teria que aguardar o desfecho da missão. Lá fora, a lua afugentara o dia e agora reinava absoluta no céu. Banhada pela luz branca, uma figura curvada encarava o caçador de monstros – com os cabelos ensebados grudados ao rosto cadavérico, a Velha-de-Covas era a caricatura macabra da humanidade, balançando a barriga flácida e os seios murchos no caminhar lânguido que lhe era típico.
“Rrrobô meus crânio, ladrão...”, a coisa sussurrou entre os dentes podres. “Vai cavá outros procê, vai cavá...”
Erguendo-se, o homem caminhou para fora da capela e desembainhou a espada de prata. A Velha-de-Covas recuou e rosnou ao vislumbrar a lâmina mágica, ciente de que representava seu possível fim. Geralt, contudo, sabia que ela não fugiria do confronto; para bruxos, monstros eram tão previsíveis quanto a chuva era para os druidas.
A criatura avançou, mas o homem de cabelos brancos invocou uma onda de fogo que a abraçou em cheio. Desorientada, a Velha-de-Covas tropeçou e desferiu golpes às cegas, mas Geralt já havia saltado para o lado e – com um gesto da mão desarmada – manifestado um círculo mágico ao redor dos combatentes. Com a força drenada pelo feitiço e a pele esturricada, o monstro pouco fez para evitar a espada que finalmente lhe trespassou o peito.
Limpando a lâmina, o bruxo encarou o corpo grotesco da Velha-de-Covas – agora apenas outro cadáver do cemitério. Ainda teria que lhe remover a cabeça para apresenta-la ao contratante, mas a ação podia esperar alguns minutos; Geralt precisava mesmo esvaziar a bexiga.
“Uma ação mundana frente a tudo isso”, ele pensou, filosofando sobre o que a palavra realmente significava para alguém que exterminava monstros devoradores de gente em troca de moedas.
- Solano
--------------------
Recado aos leitores:
Neste final de semana (dias 4, 5 e 6 de setembro) convido vocês para o lançamento do 2º volume da série Espadachim de Carvão na XVII Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro – confira aqui [ http://espadachimdecarvao.com/bienal-do-livro-2015-o-espadachim-de-carvao-e-as-pontes-de-puzur/ ] minha agenda no evento. Nos vemos lá! :)