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Marcelo Milici | A tecnologia que assassinou os clichês dos filmes de terror

Eva (via conversa de vídeo na webcam): “Mamãe, quem está atrás de você?” (Pesadelos do Passado, 2012)

13.11.2015, às 12H14.
Atualizada em 13.11.2015, ÀS 12H35

Pelas longas estradas do Texas, eles correm e não deveriam parar. Visitar a antiga da casa da família e o cemitério local farão parte do tour, sem equívocos no percurso graças ao sofisticado GPS made in China. Um caronista insano, sem whatsapp e página no Facebook, apresenta suas tendências homicidas ao mostrar em sua câmera digital, com 24 megapixels, imagens de animais esquartejados, e tira sem autorização uma selfie com os jovens turistas propondo enviar a foto para eles via bluetooth por alguns trocados. É provável que Sally e seus amigos não sofressem tanto, se o wi-fi dos estabelecimentos encontrados pelo caminho permitisse uma comunicação mais ágil entre Pam, Jerry e Franklin; assim como Leatherface poderia consultar receitas variadas de carne em seu tablet e até catalogar as partes humanas numa tabela bem organizada no Excel. Imagine, então, se Marion Crane olhasse rapidamente em seu iPhone a baixa avaliação do Motel Bates em sites de viagem, desde a ausência de internet aos chuveiros frios? Será que ela arriscaria uma passada no local ou continuaria o percurso em busca de uma acomodação melhor? E se Samara simplesmente transmitisse sua maldição pela web através de seu vídeo viral, aproveitando a internet rápida para eliminar suas vítimas em poucas horas ao invés de sete dias?

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Boa parte dos filmes de terror teria uma solução diferente na Era da Informação. Ainda que muitos ainda insistam em usar desculpas como o celular sem sinal, para facilitar as ações dos assassinos em série, o gênero fantástico está, aos poucos, adaptando-se à evolução tecnológica. A comunicação mais ágil através de inúmeras redes sociais e a facilidade de compra pela internet são ferramentas que impedem que você se sinta sozinho ou precise estar naquele beco escuro com um pacote do supermercado, ao mesmo tempo em que desenvolve um novo tipo de psicopata, o social killer, aquele que pode seguir seus passos pela web, sem necessidade de máscara para ocultar o rosto. Já as assombrações precisam, agora, estar logadas, torcendo para que seu firewall não seja potente a ponto de bloqueá-las e impedir suas ações macabras. Até o apocalipse zumbi pode ser evitado por um bom antivírus, desde que você não arrisque dar um passeio quando os jornais anunciarem os primeiros sintomas.

Não se pode negar as qualidades da conexão virtual, permitindo proximidades e acesso facilitado, porém, de uma certa forma, ela assassinou algumas possibilidades que o horror soube explorar ao longo de sua trajetória. O estado de isolamento absoluto que contribuiu para a manifestação sobrenatural no Overlook Hotel, de O Iluminado (1980), por exemplo; as pesquisas sobre o passado de moradias e crimes sem solução outrora feitas em bibliotecas, um ambiente que já proporcionou momentos bem interessantes do gênero como o fantasma assustador de Os Caça-Fantasmas (1984); o mistério solucionado pela revelação de uma fotografia, que, muitas vezes, demorava para evidenciar a pista necessária, como visto no excelente Espíritos - A Morte está ao seu Lado (2004); e até mesmo a velha lenda da babá que recebe ligações misteriosas de dentro da casa em que está trabalhando, devido a uma extensão existente no andar de cima.

Para sobreviver ao extermínio desses clichês, o cinema fantástico precisou se reinventar, acrescentar novos medos e criar pesadelos virtuais. Com a estreia de Amizade Desfeita (Cybernatural ou Unfriended, 2014), o terror parece ter encontrado um novo caminho. Se permitir o susto por meio de sites macabros (como o de Medo Ponto com Br, 2002) já não fosse suficientemente intrigante, levando o espectador a questionar como o domínio sobrenatural foi contratado, uma tendência atual é aterrorizar pelas webcams e salas de bate-papo, através de formatos diferenciados de narrativa.

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Amizade Desfeita (Unfriended, 2014)
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Chat - A Sala Negra (Chatroom, 2010)

O primeiro exemplar foi realizado por Hideo Nakata (de Ringu e suas continuações), com Chat - A Sala Negra (Chatroom, 2010). Na trama, cinco jovens se encontram numa sala de bate-papo intitulada Chelsea Teens!, criada pelo perturbado William (Aaron Johnson, de Kickass – Quebrando Tudo, 2010). Enquanto apresentam suas personalidades, o grupo demonstra ter problemas pessoais, seja através da inveja que sente pelo irmão, pela distância dos pais e até mesmo por nutrir uma paixão secreta por uma criança. Eva (Imogen Poots, de Extermínio 2, 2007) se encanta com a dialética de Will, permitindo que seu problema seja resolvido na busca pela carreira de modelo. Ainda há o solitário Jim (Matthew Beard), a infeliz e tímida Emily (Hannah Murray) e o problemático Mo (Daniel Kaluuya), que se sente atraído pela irmã de 11 anos de seu melhor amigo. Com todos esses conflitos se confrontando, torna-se fácil para Will manipular o grupo para conseguir o que quer através da sala Dark Place, um ambiente virtual depressivo e motivador para suicídios.

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The Den (2013)

As conversas virtuais são exibidas de forma física, mostrando literalmente os personagens numa sala, trocando informações como um encontro de alcoólicos anônimos - embora a conexão mais evidente seja com Clube dos Cinco (The Breakfast Club, 1985), de John Hughes. O recurso torna-se interessante pelos diálogos efetivamente digitados, com o linguajar propício para o ambiente, permitindo ainda a postagem de vídeos e fotos, além das mentiras que são escondidas por apelidos e pela falta de troca de olhares. Um bom filme, com boas cenas de tensão, apesar de se tornar incômodo pela linguagem plenamente adolescente, necessária mas irritante.

Em 2013, The Den surgiu como uma aposta ainda mais diferenciada, desenvolvido apenas com webcams numa alternativa curiosa aos desgastados found footages, com elementos dos saudosos snuffs. Surgiu da mente dos novatos Zachary Donohue e Lauren Thompson, com referências a O Albergue (Hostel, 2005) e a filmes com assassinos mascarados, concluído num produto extremamente eficiente em conteúdo e realização. O nome do filme, com inúmeros significados plausíveis como “covil” e “antro“, refere-se a uma nova rede social que permite os contatos em vídeo com pessoas do mundo inteiro.

Elizabeth (Melanie Papalia, de A Face da Morte, 2012) está disposta a realizar uma pesquisa pela faculdade, ficando o maior tempo possível conectada ao site com o intuito de registrar o comportamento das pessoas que se envolvem com esse tipo de rede social. Entre adolescentes interessados em ver peitos, genitálias à mostra e tentativas de golpes, ela até estabelece alguns diálogos com alguns envolvidos, mas não imaginava o que poderia acontecer quando resolvesse conversar com a imagem estática de uma jovem. O que parecia ser um chat com uma garota com a webcam danificada se transforma num chocante exemplar de snuff movie, quando a câmera mostra a morte silenciosa da menina com a garganta sendo cortada por uma faca. É apenas o início do pesadelo!

Conhecidos de Elizabeth, como o namorado Damien (David Schlachtenhaufen) e o amigo Max (Adam Shapiro), e até mesmo a irmã grávida, entram de gaiato nessa rede de horror, num jogo de gravações em vídeo, sequestros e câmeras escondidas. O tal assassino parece estar cada vez mais próximo, invadindo moradas e realizando filmagens com o celular entre os policiais, instigando até mesmo o sargento Tisbert (Matt Riedy). Será que existe saída para essa rede mortal? Quem estaria por trás das gravações e qual o intuito delas?

Essas dúvidas serão sanadas de forma surpreendente no último ato. Donohue consegue manter o dinamismo das gravações com webcam de modo interessante, alternando a todo momento as personagens e os diálogos, alguns divertidos e insanos como o proferido pelo experiente Bill Oberst Jr.. É claro que o espectador mais atento notará falhas evidentes nas gravações com poderosas webcams, e alguns até irão ver o filme com os vícios dos found footages, o que não é bem verdade. Trata-de uma realidade muito próxima, assustadora para os pais modernos, cuja justificativa de existência é bastante simples: se existem pessoas que realizam atos insanos na rede é porque existem pessoas insanas que curtem ver esses atos!

Com um estilo mais voltado para o thriller, em 2014 foi a vez do intenso Perseguição Virtual (Open Windows), de Nacho Vigalondo, contando com o hobbit Elijah Wood, como o fanático Nick Chambers, um rapaz que venceu um concurso para encontrar a requisitada atriz Jill Goddard (Sasha Grey, a musa dos filmes adultos). Enquanto aguarda num hotel pelo jantar com a garota, ele observa Jill num encontro com a imprensa para promover seu novo filme. Eis que um estranho, apelidado Chord (Neil Maskell), inicia um jogo de gato e rato, com tarefas ousadas e chantagem, manipulando o rapaz com sua habilidade hacker para alcançar seu objetivo psicótico.

Perseguição Virtual (Open Windows, 2014)

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Com uma primeira parte bem mais interessante e próxima do real, o longa deixa o suspense de lado no terceiro ato e se perde em exageros e absurdos para tentar surpreender o espectador. Se a narrativa acerta pelo dinamismo das câmeras e da movimentação das personagens, por outro lado cria um universo virtual atualmente inverossímil. E a escolha de Elijah Wood como vítima de ocasião não funciona como se espera, contribuindo para a falta de fluidez e convencimento do enredo. Perseguição Virtual sofre com a ausência de limites, divertindo na mesma proporção que afasta qualquer identificação com o público.

Entre produções menores com a temática "terror virtual" - Confiar (2010), Megan is Missing (2011), A Face da Morte (2012) e até o recente I-Lived (2015) sobre um aplicativo de celular demoníaco - Amizade Desfeita se destaca pela simplicidade de seu enredo, como se fosse um conto de terror ou lenda urbana. Ainda que seja apenas adolescente, diferente da seriedade do melhor exemplar, The Den, é provável que o espectador até se identifique com sua rotina diária de chats, paqueras e encontros online.

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Confiar (2010)

Como toda jovem moderna, Blaire (Shelley Henning) se interessa por vídeos curiosos sobre aparições fantasmagóricas, acidentes e assassinatos, típicos da deep web. Ela costuma se encontrar com os amigos através de vídeo-conferências no Skype, seja para conversas íntimas com o namorado Mitch (Moses Jacob Storm) ou para falar bobagens com o alcoólico Adam (Will Peltz) e os amigos Ken (Jacob Wysocki), Jess (Renee Olstead) e Val (Courtney Halverson). Faz exatamente um ano do suicídio de Laura Barns (Heather Sossaman), por consequência de um vídeo que mostrava a garota bêbada com os dizeres "Kill Ur Self Laura", e o assunto ainda é lembrado pelo grupo.

Eis que uma sexta pessoa, o tal "billie227", invade a conversa, sem mostrar o rosto, mas posteriormente se identificando como a jovem que se matou. A assombração virtual reativa sua conta do Facebook e inicia vários jogos sinistros e mortais com a intenção de que eles confessem seus crimes e segredos obscuros. O que parecia ser apenas uma "trolagem" de algum conhecido aos poucos se transforma numa luta pela sobrevivência contra uma força sobrenatural em busca de vingança. Não é possível se desconectar da conversa, nem excluir o invasor, apenas participar desse julgamento sem inocentes, condenando-os à morte por aparente suicídio.

Com as várias janelas abertas, alternando entre sites populares como Youtube, Facebook e Instagram, o filme de Levan Gabriadze, a partir do roteiro de Nelson Greaves, eleva a tensão lentamente, sendo beneficiado pelas atuações convincentes dos jovens e seus diálogos fúteis, condizentes com a idade. O conceito surgiu a partir do tema bullying - agora, ampliado para o cyberbullying -, quando Gabriadze recordou seu período escolar e seus colegas maldosos, imaginando uma possibilidade de vingança contra suas atitudes inconsequentes. A princípio, o longa se chamaria Offline, para depois ser rebatizado para Cybernatural e Unfriended, em gravações que duraram apenas 12 dias.

Amizade Desfeita deve ser a ponta do iceberg. Com o pontapé inicial em 2010 e a tecnologia avançando a passos largos, pode-se esperar similares nos próximos anos. Interatividade e encontros virtuais nas mais variadas salas de bate-papo e redes sociais, o terror definitivamente sofreu um upgrade, não apenas nos efeitos especiais - quase todos os filmes em 3D, praticamente todos realizados com computador -, mas nos conceitos. Era de se imaginar essa evolução necessária, embora preocupe pela ausência de ingenuidade e de alguns clichês que tornaram o gênero tão fascinante. Talvez isso explique a opção de muitos cineastas em ambientar seus filmes nas décadas de 70 e 80 (Invocação do Mal, Annabelle, A Casa do Diabo...), resgatando o período em que o telefone ficava mudo durante uma tempestade e Leatherface preparava os almoços da família, sem consultar receitas na internet!

Dedicado à memória de Gunnar Hansen  (1947-2015), o legítimo Leatherface, de O Massacre da Serra Elétrica, 1974

*  Marcelo Milici é professor, com especialização em Horror Gótico, idealizador do Boca do Inferno, fã de rock´n roll e paçoca.

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