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Marcelo Milici | Snuff Movies: Matando a Curiosidade!

"É claro que te deixa desconfortável. A boa arte deveria fazer isso" - Stephen King

31.07.2015, às 15H21.
Atualizada em 31.07.2015, ÀS 15H52

Pode-se dizer que os alicerces do cinema fantástico são o medo e a curiosidade. Desde a exibição pública do curta A Chegada do Trem na Estação, pelos irmãos Lumiére, em 28 de dezembro de 1895, foi possível notar que os anseios dos espectadores sempre foram experimentar sensações novas e se aproximar da morte. Não basta apenas apresentar um enredo envolvente e criativo; é preciso também conduzir a plateia a limites extremos, como se fosse possível até mesmo morrer e, logo depois da sessão, voltar à vida, percebendo que está no conforto da cadeira de cinema ou do sofá de casa. É essa curiosidade mórbida que faz com que as pessoas diminuam a velocidade do veículo para visualizar as vítimas de um acidente de trânsito ou queiram buscar informações sobre um tal vídeo intitulado "2 Guys and 1 Hammer", envolvendo os Maníacos de Dnepropetrovsk, famosos por vários crimes cometidos como o que fizeram com Sergei Yatzenko, um homem de 48 anos que desapareceu após um passeio de bicicleta.

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Toda essa vontade - presente desde a literatura de Guillaume Apollinaire com seu Um Belo Filme, de 1910, com relatos sobre um assassinato registrado em câmera - parecia não ter sido saciada nem quando as cores invadiram as telas e Herschell Gordon Lewis fez questão de intensificar o tom vermelho em seu clássico de 1963 Banquete de Sangue (Blood Feast). Não era apenas para ofertar à deusa Ishtar, conhecida como a Mãe das Trevas, mas também dar um passo adiante no cinema para que seus precursores conhecessem a fórmula do interesse público. Se você quer fazer sucesso no gênero, basta causar medo, mostrar cenas de violência e assassinato cada vez mais ousadas.

Assim surgiram as lendas por trás dos chamados "snuff", ou produções que trazem assassinatos supostamente reais. O termo aparecia pela primeira vez na quinta edição do Slang Dictionary, em 1874, definido como "uma palavra muito comum entre as classes baixas de Londres, significando morrer por doença ou acidente". No inglês antigo viria de "snithan" passando por "snuffen" ou "snuppen" - que significa "desmembrar" ou "matar por esfaqueamento ou corte" - associado a "snide" (falso, imitação).

Ainda que existam menções a produções no estilo até mesmo na década de 60, como A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960), de Michael Powell, sobre um cineasta que resolve documentar seus assassinatos, o filme que daria uma facada inicial no subgênero seria um longa argentino lançado em 1976. Filmado em 1971, com um orçamento insignificante e o título Slaughter, com direção do casal Michael e Roberta Findlay, a película logo teria problemas com um trabalho homônimo de 1972, de Jim Brown, e alteraria seu nome para Snuff, numa referência à obra de Ed Sanders sobre os assassinatos de Charles Manson, intitulada The Family: The Story of Charles Manson's Dune Buggy Attack Battalion. Na trama, um grupo hippie de jovens motoqueiras segue o líder Satan na realização de diversos crimes até objetivar numa atriz que acaba de chegar à América do Sul com seu namorado diretor para fazer um filme. Extremamente amador, com péssimas atuações e diálogos, a produção ficaria guardada por quatro anos sob a tutela do produtor Allan Shackleton até surgir uma reportagem em 1975 sobre filmes "snuff" sendo feitos na América do Sul. Ele decidiu investir numa lenda urbana, chamando Simon Nuchtern para dirigir um novo final, com o assassinato "real" de uma das atrizes de Snuff, mesmo deixando vestígios de que se tratava de uma armação rodada anos depois.

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A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960)

Deu certo. O que era para ser apenas um filme ruim e desconhecido tornou-se cult em Nova York, Filadélfia, Los Angeles e Boston. Mesmo com a divulgação das filmagens falsas pela Variety em 1976 o longa passaria a ser investigado e atrairia cada vez mais interessados em conhecer o primeiro "snuff movie". A frase promocional já indicava o que o público veria na tela: "Isso só poderia ser feito na América do Sul...onde a vida é barata!" Para instigar a curiosidade, dizem que Shackleton colocou notícias falsas no jornais a respeito de protestos sendo realizados pelo país e até contratou manifestantes para causar mais pânico. Era o que a população queria realmente ver, tanto que outros cineastas pelo mundo começaram a tocar levemente no subgênero.

Last House on Dead End Street, de 1977, de Roger Watkins, foi o primeiro bastardo. Também filmado em 1972, e fazendo uso mais uma vez da onda de violência cometida pelos seguidores de Charles Manson, o filme traria o próprio diretor no papel principal como um sujeito que acabara de sair da prisão e decidiu punir a sociedade cometendo assassinatos e registrando-os em vídeo. Bem mais produzido que Snuff, alcançaria o mesmo status através de cenas bem realizadas de gore e morte, tentando mais uma vez convencer de que se trata de registros reais de assassinato. A qualidade melhoraria ainda mais em 79, com Hardcore - No Submundo do Sexo, de Paul Schrader, com um pai em busca de sua filha, possivelmente envolvida com a indústria pornográfica, encontrando vestígios de um submundo doente e violento. O destaque fica por conta do ator George C. Scott, com sua degradação evidente.

No mesmo ano, com um elenco ainda mais refinado, contando com Audrey Hepburn, Ben Gazzara e James Mason, é lançado o clássico A Herdeira (Bloodline), de Terence Young, baseado num romance de Sidney Sheldon. Depois que Elizabeth (Hepburn) assume a herança de seu pai, começa a descobrir o lado negro de sua companhia. A referência ao "snuff" acontece em dado momento em que o personagem de James Mason assiste a cenas de estrangulamento de prostitutas - na versão final, tal momento seria cortado para diminuir a duração do filme e evitar problemas com a censura, um receio que um tal Ruggero Deodato não teria no ano seguinte com Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980)

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Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980)

Com efeitos realistas e inaugurando o estilo "found footage" - que mais tarde se tornaria popular com A Bruxa de Blair, Rec e Atividade Paranormal -, Deodato conta que quatro documentaristas desapareceram durante umas filmagens na selva, investigando tribos canibais. Ao avaliar as fitas encontradas, nota-se que o grupo havia cometido atrocidades contra os índios na viagem, tendo seu fim como consequência de seus atos. As cenas com o massacre dos jovens é tão bem feita e produzida que o próprio cineasta acabou sendo obrigado a dar explicações e provar que o elenco estava realmente vivo. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo dos animais mortos no processo, o que deu ao longa um status de cult e serviria para dar início ao ciclo de produções italianas com canibais.

Depois, em 1983, David Cronenberg daria à luz Videodrome - A Síndrome do Vídeo, também aproveitando para beliscar o subgênero. O empresário Max Renn (James Woods), que possui uma estação de televisão a cabo chamada "Civic TV", começa a receber transmissões de um programa clandestino com pessoas sendo torturadas e assassinadas de verdade. Ao investigar as origens, descobre algo ainda mais assustador contendo alucinações e sofrimento. Na linha dos "snuff", até mesmo a banda Nine Inch Nails desenvolveria seu exemplar através de curta-metragem The Broken Movie, de 1993, com a junção de quatro músicas e cenas de morte "reais". Um ano depois, a fórmula seria explorada em Testemunha Muda (Mute Witness, 1995), de Anthony Waller; Estranhos Prazeres (Strange Days, 1995), de Kathryn Bigelow; no azedo Retrato de um Assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer, 1996), de John McNaughton; Morte ao Vivo (Tesis, 1996), de Alejandro Amenábar, além de O Bravo, de Johnny Depp, 8mm, de Joel Schumacher, Lenda Urbana 2 (2000), de John Ottman, August Underground (2001), de Fred Vogel, Snuff 102 (2007), de Mariano Peralta, A Entidade, de Scott Derrickson...

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Flower of Flesh and Blood

Uma câmera na mão, um corpo estendido na mesa

Em 1991, o ator e comediante Charlie Sheen ficou chocado com um vídeo contendo cenas de sequestro, torturas e desmembramento de uma jovem japonesa por um homem vestido com roupas de samurai. Ele entrou em contato com o FBI para pedir que fosse feita uma investigação a respeito, embora tenha recebido a informação de que já estava em processo. Na verdade, Sheen havia visto uma amostra de Flower of Flesh and Blood, o segundo filme de uma série japonesa conhecida como Guinea Pig. E a "cobaia" usada na produção era uma atriz e estava viva e bem, herdando os mitos envolvendo os "snuff movies".

Enquanto a curiosidade atiçava uma parcela da população, uma outra via nesse estilo uma prova do machismo da sociedade moderna. Escritoras como Gloria Steinem e Andrea Dworkin retratam o "snuff" como o mal supremo de uma cultura que odeia a mulher, sempre vítima dessas produções. Elas afirmavam que a mulher, quando não serve mais nem para a indústria pornô, acaba se envolvendo em projetos similares. Outro que pesquisou a fundo o assunto foi Cecil Adams em sua coluna The Straight Dope. Em sua busca, conversou com Ted McIlvenny, diretor do Institute for the Advanced Study of Human Sexuality. Ted disse ter encontrado, em toda a sua coleção contendo mais de 389 mil filmes pornôs, apenas três evidências de "snuff" sem explicação sobre a falsidade do material: "um homem que teve um ataque cardíaco durante uma sessão de S&M, outro que acidentalmente se estrangulou durante uma asfixiação autoerótica e uma morte verdadeira em Marrocos, durante um número religioso, onde um menino corcunda era dilacerado por cavalos, enquanto homens ao redor se masturbavam".

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O Albergue (Hostel, 2005)

A discussão sobre veracidade ou não do material servia de engrenagem para o subgênero. De um lado estavam as produções que escondiam os "snuff" em suas produções de diversos estilos; do outro, surgiam documentários com cenas de mortes explícitas como o popular Faces da Morte (Faces of Death). Lançado em 1978, já se orgulhava da possibilidade absurda de estampar o selo "Banido em Mais de 40 países" - na verdade, só conseguiu uma censura provisória na Austrália, Noruega, Finlândia, Nova Zelândia e Reino Unido. Com 40% de seu material forjado, segundo o especialista em efeitos especiais Allan A. Apone, algumas das cenas apresentadas eram reais, trazendo vítimas do Vietnã, acidentes fatais e muitas mortes de animais, até mesmo em matadouros.

Escrito por John Alan Schwartz, ou Alan Black, e dirigido por Conan LeCilaire e John Alan Schwartz - que aparecem em pequenas pontas na série -, Faces da Morte conseguiu um bom número de fãs na época, embora já não funcione mais na nova geração Youtube. Foram feitos seis filmes da franquia, sendo que os dois últimos compilando as piores mortes. Apesar do caráter documental, muitos dos envolvidos na criação das mortes da série chegaram a brigar na justiça pelos créditos, sabendo dos lucros obtidos. O sucesso chegaria a inspirar uma produção bastarda, de 1993, o shockumentary Traços da Morte, com mais cenas com mortes reais, muitas já apresentadas nos telejornais, como o suicídio televisionado de Budd Dwyer, um político americano do estado da Pensilvânia, e a morte do ator Vic Morrow durante as filmagens de No Limite da Realidade (Twilight Zone: The Movie, 1983).

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Mártires (Martyrs, 2008)

A Herança Splatter: Torture Porn

Se o gosto pelo mórbido já é um tanto duvidoso, a partir do novo milênio uma nova definição surgiu para um estilo que envolvia violência, nudez, sadismo, mutilação e tortura. "Torture Porn" foi o termo concebido pelo crítico David Edelstein para definir o longa de Eli Roth O Albergue (Hostel, 2005). Nesses filmes não há a intenção de registrar em vídeo as atrocidades cometidas, mas o modus operandi é basicamente o mesmo: mostrar pessoas sendo torturadas, violentadas e mortas, mesmo que não seja preciso apresentar um enredo que justifique os atos. Além do filme de Roth e sua continuação, entraram para a lista a franquia Jogos Mortais, Rejeitados pelo Diabo (2005) e Wolf Creek - Viagem ao Inferno (2005).

Esse subgênero – uma renovação do que já era comum na década de 70 - provou ser lucrativo se levar em consideração os frutos alcançados pelos seus realizadores. Turistas (2006) e Cativeiro (2007) ampliaram as possibilidades e fizeram com que passassem a observar o material anterior ao filme de Roth e que também se enquadraria no estilo. Assim filmes como Ichi - O Assassino (2001) e o francês Baise-moi (2000) entraram para a categoria arrastando outras produções. Bastava aparecer uma mulher seminua e acorrentada sofrendo torturas físicas e psicológicas para que o subgênero fosse alimentado.

No entanto, diferente dos "snuff", "Torture Porn" é apontado por muitos fãs como um termo pejorativo, uma definição para uma produção ruim. Não é o que pensa Eli Roth, tanto que fazia questão de estampar as palavras no lançamento de O Albergue 2 (2007). Ele inclusive aproveitou para alfinetar o crítico que o apontara como criador: "genuinamente falam mais sobre a compreensão limitada dos críticos do que sobre o que os filmes de terror podem fazer". E ele não está sozinho nessa defesa. O mestre do horror moderno, Stephen King, afirmou: "É claro que ele [Torture Porn] te deixa desconfortável. A boa arte deveria fazer isso". Já George Romero afirmou certa vez que jamais faria um "Torture Porn", pois o subgênero "não permite metáforas".

Com uma câmera na mão ou não, é certo que a curiosidade pela morte vai sempre fazer parte do gênero fantástico. Com os avanços nos efeitos especiais e os estudos envolvendo a anatomia humana, não faltará ousadia para o que será visto na tela. A proximidade com o real prova que os limites estão cada vez menores, havendo mais questionamentos sobre a autenticidade. Longas como A Serbian Film, Kill List e A Centopeia Humana evidenciam o quanto a ficção pode chocar tanto quanto uma tentativa de inventar uma verdadeira morte. Como disse uma certa personagem do excelente horror francês Mártires (Martyrs, 2008) a respeito das sensações de quase-morte - e que servem para qualquer "snuff" ou "Torture Porn": "É fácil criar uma vítima, minha jovem, tão fácil. Você tranca alguém é um quarto escuro. Ele começa a sofrer. Você alimenta esse sofrimento. Metodicamente, sistematicamente e friamente. E faz isso por último. Seu sujeito vai iniciar uma série de estados. Depois de um tempo, vem o trauma. Abre um pequeno buraco e faz ver coisas que não existem".

Marcelo Milici é professor, com especialização em Horror Gótico, idealizador do Boca do Inferno, fã de rock´n roll e paçoca.

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