Maria Fernanda Cândido e Luiz Fernando Carvalho no set de A Paixão Segundo G.H. (Reprodução)

Créditos da imagem: Maria Fernanda Cândido e Luiz Fernando Carvalho no set de A Paixão Segundo G.H. (Reprodução)

Filmes

Entrevista

A Paixão Segundo G.H. fez espectadora vomitar no cinema: "É um filme desafiador"

Adaptação de obra de Clarice Lispector tem Maria Fernanda Cândido encarando uma barata e a vida no papel de G.H.

Omelete
5 min de leitura
12.04.2024, às 10H11.

Muitos falam do "livro infilmável", aquela fronteira para onde não vale a pena ir- mas o cineasta Luiz Fernando Carvalho faz o contrário e sai correndo nesta direção proibida. E faz isso sempre muito bem acompanhado. Para trazer para as telas as palavras de Clarice Lispector e adaptar A Paixão Segundo G.H., Carvalho criou lentes específicas para filmar Maria Fernanda Cândido e sua batalha existencial frente a uma barata.

Luiz Fernando e Maria Fernanda viram ao Omelete falar sobre o filme, rodado em 2018, com equipe super enxuta, e que agora chega aos cinemas. Mas A Paixão Segundo G.H. é mesmo infilmável?

"Neste mundo tão cheio de regras - o cinema tem que ser assim, a dramaturgia tem que ser assim, etc. - vemos que nos mangás, nas graphic novels, dá para ver o tanto de formas diferentes de narração, de enquadrar, de desenhar, de contar histórias. E no cinema talvez estejamos andando em cima de um caminho muito repetitivo. A Paixão Segundo G.H. é um livro inclassificável. Você não sabe se ele é suspense, se é um thriller psicológico... Nós resolvemos respeitar esta estranheza dele", disse Luiz Fernando.

Maria Fernanda disse que no set eles não tinham um roteiro "normal", mas que o livro era o que os guiava. "A gente precisou de muita coragem para caminhar por este lugar que a gente não conhecia", completou. Ela definiu a filmagem como uma experiência forte, bonita e desafiadora, "talvez a maior aventura da minha vida profissional. O filme mais emocionante que eu já fiz."

E não foi por ter medo de baratas. Quem já leu o livro, sabe da importância do inseto na trama. "No filme, ela vai representar o imundo, nojento, grotesco e este animal excluído, não bem-vindo", comentou a atriz.

O diretor complementou dizendo também que "GH vai se dar conta de quem ela é de verdade quando se depara com este outro, que é diferente dela. Quando a gente se olha no espelho, a gente está se enganando, não está se vendo, mas sim se escondendo. Mas quando ela fica na frente daquilo que é diametralmente oposto em tudo, classe social, gênero, religião, aí sim você percebe o quanto essas alteridades são importantes. O quanto é necessário aprender a caminhar em direção a essa diferença, a reconhecer o outro e desejar a companhia do outro".

60 anos

Clarice Lispector publicou o livro em 1964, mas é impressionante como ele continua atual e moderno seis décadas depois. E sua adaptação aos cinemas hoje talvez não fosse possível naquela época - não só por causa do Golpe Militar e a Ditadura que se instalava no país. Para o diretor, o deslocamento do tempo vai dando um afastamento que é interessante.

"Você reflete sobre aquele tempo em relação ao presente e percebe que ele ainda é necessário", disse Luiz Fernando. "Talvez em 64 a gente não tivesse ainda um olhar e uma capacidade de fazer uma leitura correta do livro - e não é uma questão de "está nas entrelinhas". Tudo está nas linhas mesmo", complementou a atriz.

Por falar nas linhas, as palavras impressas no papel foram inspiração para que o cineasta criasse uma lente específica para rodar este longa-metragem. Luiz Fernando queria passar ao espectador a mesma distância de 30 a 40 cm que separa o olho do leitor e as páginas de papel onde tudo acontece. Por isso criou uma lente que é ao mesmo tempo uma grande angular, que permite que aproxime a câmera de Maria Fernanda sem perder nenhum detalhe de seu rosto, e é também uma teleobjetiva, que transforma tudo o que está fora de foco um borrão.

"É como se ela estivesse fora do apartamento dela, como se estivesse quase num precipício, onde ela não teria apoio. Eu construí essa lente e chamei de 'lente G.H.'", contou orgulhoso o diretor, que usou o equipamento em todos os planos de Maria - e da barata também.

As cenas colocam o inseto tão gigantesco na tela - e tão nojento - que em uma exibição especial do filme em Paris uma pessoa chegou a vomitar no cinema. Quando estava indo embora, Maria Fernanda contou o caso com espanto. A atriz lembra que estava sentada no fundo da sala e que viu a pessoa colocando a mão na boca, se levantando e mal conseguindo chegar à porta de emergência. O fato, porém, não impediu que ela voltasse para a sala alguns minutos depois para terminar de ver o filme.

Clarice fala com quem?

A Paixão Segundo G.H. é um fluxo de consciência da protagonista. Luiz Fernando vê o filme como "um monólogo de alguém que, a partir da perda de uma paixão, perde sua conexão com o mundo, se sente em queda."

Em uma entrevista para o programa Panorama, na TV Cultura, o entrevistador perguntou a Clarice qual livro mais atingia o público jovem. A autora respondeu que um professor de português chegou para ela dizendo que havia lido A Paixão Segundo G.H. quatro vezes e não tinha entendido. Por outro lado, uma universitária disse que era seu livro de cabeceira. Isso vale para o livro e também para o filme.

"O público da Clarice, um público de um filme como o nosso não precisa ser uma pessoa formada, acadêmica, só precisa estar aberto para uma experiência", finalizou Luiz Fernando, que parte agora para um novo projeto, a remasterização em 4K do ótimo (e também "infilmável") Lavoura Arcaica (2001), seu longa-metragem de estreia.

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