Filmes

Artigo

“No Brasil, vocês são mais loucos que a gente”, diz atriz espanhola Carmen Maura no set de Veneza

Musa de Almodóvar estrela o longa-metragem que Miguel Falabella roda no Uruguai

03.04.2018, às 11H42.
Atualizada em 04.04.2018, ÀS 06H01

Num dia sem trânsito no Uruguai, gasta-se cerca de 45 minutos do aeroporto de Montevidéu até o set de filmagem de Veneza, longa de Miguel Falabella: um casarão numa região bucólica, adereçado como se fosse um cabaré de interior, com luz vermelha, bolero na jukebox e garotas de programa. Bom nem todas... Algumas das prostitutas criadas com base na peça homônima do argentino Jorge Accame – encenada por Falabella nos palcos do Rio em 2003 - sonham, inclusive a dona do bordel, Gringa, papel a quem o ator, dramaturgo e cineasta confiou a uma diva da Europa: a atriz espanhola Carmen Maura.

Fetiche de Pedro Almodóvar nos anos 1980, ela rodou com o diretor espanhol cults como Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos e A Lei do Desejo. Agora, aos 72 anos, ela é apresentada ao método brasileiro de se contar fábulas, ainda que em solo uruguaio.

“Vocês são mais loucos do que a gente. Esse set está cheio de loucos. O Miguel, por exemplo, chora quando eu faço uma cena que o emociona. Mas estou acostumado com loucos brilhantes. Fiz muito Almodóvar...”, diz Carmen ao Omelete em seu camarim, à espera de filmar. “O difícil aqui é se acostumar com esse jeitinho cantado de falar de vocês. É uma coisinha assim melódica, manhosinha”.

Mariana Vianna/Divulgação

Produzido por Julio Uchôa, da Ananã, grife por trás dos milhões arrecadados pela franquia SOS – Mulheres ao Mar e pelo cult Soundtrack, Veneza terá cenas rodadas na cidade italiana de onde toma seu título emprestado. É lá que Gringa sonha acertar as contas (leia-se reatar uma velha paixão) com o único homem que a amou de verdade. Mas ela acabou roubando o sujeito. O dinheiro bancou seu bordel... e anos de culpa. Agora, mais velha e cega, ela sonha ir pra lá de novo. E ser feliz.

“Falabella é um chefe encantador. Ele dirige com suavidade, respeitando sua equipe. Mas tem uma coisa aqui que não quero repetir jamais: ter de atuar sem olhar para meus colegas”, diz a veterana atriz, ganhadora do prêmio coletivo dado em Cannes ao elenco de Volver, em 2006. “Não poder ter o contato de olhar com meus colegas é péssimo. Nem se o Spielberg me chamasse para voltar a um papel desses eu aceitaria. Dá uma certa frustração, para alguém que gosta de ver como o set interage, encarar uma cega. Mas é um aprendizado. Arte é isso: vivência no coletivo”.

Há referências cinematográficas do mais alto quilate na concepção narrativa construída por Falabella numa troca afinada com seu fotógrafo (Gustavo Hadba), seu diretor de arte (Tulé Peak) e sua figurinista (Bia Salgado). Inclua ainda no time a coprodução de Fernando Muniz, que assina o premiado documentário Cinema Novo (prêmio L’Oeil d’Or em Cannes). Passeia-se por Fellini, por Kurosawa, por melodramas do México, pelas valquírias guerreiras de Tarantino e até Tim Burton nesta produção orçada em cerca de R$ 8 milhões, com distribuição da Imagem Filmes. Tem dez anos que a cabeça por trás de sucessos populares como a série Toma Lá Dá Cá não dirigia um filme: a última (e única) experiência dele foi Polaroides Urbanas, de 2008.

“O texto de Accame traz situações que pedem o cinema. Fiz aquele primeiro longa, de 2008, para ver seu eu sabia contar uma história como cineasta. Agora, quero fazer uma fantasia citando todos os diretores que admiro numa história que é uma poesia a ser declamada a partir dessa sensação de isolamento que a América Latina vive”, diz Falabella. “Você nem pode imaginar a minha alegria quando a Carmen aceitou. Cheguei até ela por meio do agente: é o mesmo da grande atriz argentina Norma Aleandro. Sou conhecido na Argentina por meu trabalho como autor teatral. O roteiro chegou pra Carmen numa quinta. Segunda ela me ligou, dizendo: ‘El guijón es brillante. Quiero hacerlo’. Imagina a minha felicidade”.

Mariana Vianna/Divulgação

Na ativa desde 1969, Carmen já filmou em diferentes países, inclusive tramas hispano-americanas. “Fiz um filme colombiano, chamado Sofía Y El Terco, de que gosto muito. Quem me dera a distância de Madri até a América Latina fosse de apenas duas horas, como é a duração dos voos do meu país até Paris. Se fosse mais curto, poderia fazer mais coisas por aqui”, diz a atriz, que dançou com Danielle Winits numa das cenas de Veneza rodadas neste fim de semana.

A brasileira encarna Jerusa, uma das garotas do bordel de Gringa, que encontrará um aliado fiel em seu eterno cliente Tonho (Eduardo Moscovis). É ele quem vai inventar um meio de “levar” Gringa para a terra das gôndolas, ainda que de mentirinha. Outras meninas do prostíbulo vão se mobilizar, como Rita, papel de Dira Paes, que é a figura mais “pé no chão” de um filme que flerta com o lúdico. Integram o núcleo central do longa as atrizes Maria Eduarda de Carvalho, Carol Castro, Carolina Virguez e Laura Lobo.

“Fiz adaptações no texto original de Accame, que só rende cerca de 40 minutos no palco. Criei, por exemplo, uma trama paralela sobre uma garota de programa que se apaixona por um rapaz que sonha ser trans e tem ereção quando se veste de mulher”, diz Falabella, que confiou a trilha sonora a Josimar Carneiro. “Quero uma sinfonia... violinos... tudo o que tenho direito É pra emocionar”.

Perguntada sobre a importância do silêncio num filme sobre a arte de inventar como forma de sobreviver, Carmen dá um corte seco, mas com doçura. “Não teorizo sobre minha forma de atuar. Não me dou tanta importância. Por isso, sempre me surpreendo quando me dão prêmios por um trabalho que eu faço com enorme facilidade, imaginando. Desde pequena, quando brincava de bonecas, inventando historinhas, tenho facilidade para viver pessoas na ficção. Basta saber bem o texto. E ter um bom anjo da guarda”, diz a atriz, que lembra de sua estreia com Almodóvar. “Trabalhava numa galeria quando comecei a querer atuar. Minha família não recebeu bem. Falar que eu era atriz era algo tão trágico como se estivessem dizendo que eu tinha uma doença terminal. Conheci Almodóvar quando ele fazia curtas-metragens, andando com uma galera muito liberal, bem louca, diferente de mim. Ali fiquei encantado. Custou para que ele tivesse o prestígio merecido. Veio só depois de Mulheres À Beira de Um Ataque De Nervos, há 30 anos, quando ele já tinha vários filmes no currículo. Aí foram ver o que nós fazíamos na Espanha. Bom estar aqui agora, no Brasil, com pessoas que criam”.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.