14.11.2023 - Alanis Morissette durante show no Allianz Parque, em São Paulo (Caio Coletti/Omelete)

Créditos da imagem: 14.11.2023 - Alanis Morissette durante show no Allianz Parque, em São Paulo (Caio Coletti/Omelete)

Música

Artigo

Em SP, Alanis supera produção burocrática no grito, na garra e no bom humor

Cantora resgata o Jagged Little Pill com muita inteligência emocional

Omelete
3 min de leitura
15.11.2023, às 00H10.

O show de Alanis Morissette no Allianz Parque, em São Paulo, na noite desta terça (14), começou com um longo vídeo introdutório traçando o impacto cultural absurdo do Jagged Little Pill, disco mais emblemático da carreira da canadense, que comemora 28 anos em 2023. Entre aparições em cerimônias de premiação e talk shows, a vinheta não deixou de fora os esquetes do Saturday Night Live zombando da cantora e de hits como "Ironic" e "You Oughta Know", as manchetes maliciosas da imprensa, as infinitas paródias e as suas aparições jocosas em sitcoms e no filme Dogma, de Kevin Smith.

O bom humor por vezes auto depreciativo (mas nunca de fato amargo) de Alanis sempre foi uma faceta de sua personalidade menos apreciada do que deveria. Pois veja só: é justamente esse bom humor, essa índole agradavelmente desprendida de auto importância, que faz as canções do Jagged Little Pill brilharem como brilham nessa turnê comemorativa.

Mesmo porque, se dependesse só da produção, esse resgate teria muito pouco carisma. Acompanhada de uma banda de cinco instrumentistas competentes, mas terminalmente desengajados da energia das canções que estão tocando, cercada por shows de luzes previsíveis e telões preenchidos por encenações melodramáticas insossas, sobra para a própria Alanis ditar o clima do espetáculo e (re)estabelecer o valor artístico de suas composições - no grito, na entrega corporal e na consciência charmosa do tempo que se passou desde o lançamento do Jagged Little Pill.

Sem vergonha nenhuma de mostrar que envelheceu e mudou quase inteiramente em relação à jovem de 21 anos que lançou o disco que mudou sua vida, Alanis mistura aquele gingado de titia rock n’roll (calças de couro, sobretudo preto de paetê, cabelos longuíssimos ao vento enquanto manda a ver em uma guitarra espelhada) com uma teatralidade bem ensaiada que traça paralelos entre o ontem e o agora. Seja ao mover-se em zigue-zague pelo palco, os olhos sempre fixos em algum lugar além da plateia, ou ao rodopiar feito um pião no clímax de “Smiling”, declamando os últimos versos da música no chão, ela parece ter pensado muito bem em como expressar a verdade de sua relação com a música que fez quando era essa pessoa que (quase) não existe mais.

Digo “quase” porque Alanis ainda consegue, claramente, acessar o sentimento que a guiou para criar essas canções - ele não foi embora, só se transformou. Isso fica claro quando “Mary Jane” é ilustrada com fotos pessoais da cantora em vários pontos de sua vida (e de seu corpo), ecoando as alusões da letra à anorexia; ou quando os versos da monumental “You Oughta Know”, ainda uma das experiências musicais mais catárticas que qualquer um pode ter ao vivo, vem acompanhados de um virar de olhos cínico no lugar da fúria absolutamente irrestrita de um machucado recente. 

A voz é outro ponto dessa transmutação. Embora ela permaneça sendo um instrumento excepcional, a potência consistente que se ouve em gravações de décadas passadas não está mais lá - atingir notas absurdas ainda é possível, principalmente com a preparação certa (vide o trecho de quase-ópera de “Everything”), e o vibrato nunca deixa de impressionar, mas para as possibilidades da Alanis de hoje a entrega emocional importa muito mais do que a constância.

É uma escolha inteligente, como a de inserir espiadelas de seu repertório mais recente em meio à celebração de um álbum de quase três décadas atrás, criando um contraste entre o tom professoral/confessional de uma “Ablaze” e a inquietude expressada por “Ironic”, que não virou clássica à toa. Enfim, no centro de performance que poderia ser cínica (toca os hits!), Alanis nos ganha justamente por se entregar inteira, contraditória, sincera, como - crédito onde ele é devido - já tem feito incansavelmente há boas décadas.

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