Música

Artigo

A complicada questão de MC Diguinho

O precedente que "Só Surubinha de Leve" estabelece

18.01.2018, às 12H46.
Atualizada em 20.01.2018, ÀS 11H54

Ontem, o mundo da música brasileira encarou uma questão complicada: o hit funk “Só Surubinha de Leve”, de MC Diguinho, entrou nas playlists virais do Spotify. A inserção automática da música na lista da plataforma aumentou e evidenciou as críticas que o funk já vinha recebendo desde o seu lançamento em dezembro: de que o hit faz apologia ao estupro. A polêmica da letra traz à tona diversas questões, não somente do que constitui apologia ao crime, mas o que caracteriza uma letra como pessoal e não uma obra com eu lírico, além do fator da seletividade, ou seja, do que a sociedade ataca e o que decide deixar impune.

O funk é um estilo musical bastante único, principalmente quando se trata de controvérsias como essa. Como expressão de um cenário social real, as letras de funk geralmente abordam experiências corriqueiras da sociedade de onde saem, e a ocorrência concreta de tais atividades criminosas é, sem dúvida, a atrocidade. Mas o que precisa ser ponderado é que as letras que representam o mundo real de onde elas saem são fruto do problema, e não o problema em si. 

As críticas, para começar, recriminavam a depreciação de mulheres na letra, que no hit são tratadas de “piranhas”, “putas” e “filhas da puta”. Mas a questão essencial e possivelmente a única relevante para a discussão presente é seu o último verso: “Taca a bebida, depois taca a pica e depois abandona na rua”, diz MC Diguinho no fim do funk.

Hoje, o Globo publicou uma matéria com o pronunciamento de diversos especialistas e advogados sobre a questão de MC Diguinho. A opinião geral é de que a música, apesar de moralmente reprovável, não é ilegal. A jurista Luiza Oliver diz: “Temos que entender o que é previsto pela lei, que seria constranger alguém, diante da violência ou grave ameaça, a ter uma conjunção carnal. É uma letra de péssimo gosto, moralmente reprovável, mas não há crime aqui”.

A questão que MC Diguinho levanta é mais uma das polêmicas que surgem com a conscientização do tratamento da mulher da sociedade e a crescente discussão da questão do gênero. Com a regularização de entendimentos e a desconstrução de diversas questões sociais relevantes hoje, frequentemente vamos nos deparar com questões delicadas como essa, que testam as fronteiras do aceitável e questionam o que até hoje foi entendido como normal.

Da mesma maneira que fez ontem, no ano passado, logo após a marcha de Charlottesville nos EUA, o Spotify anunciou a retirada de um grande número de bandas de supremacia branca que apareciam em seu catálogo. O pronunciamento da plataforma foi o seguinte: "Conteúdos ilegais ou materiais que incitam ódio ou violência contra raça, religião, sexualidade ou coisas do tipo não são tolerados por nós. O Spotify age imediatamente para remover qualquer material do tipo que chega ao nosso conhecimento”.

Alguém poderia argumentar que inúmeras músicas – não só de funk mas do pop, do rap e do rock – por citarem determinados atos, incitam uma enorme quantidade de atividades que podem ser consideradas reprimíveis. A questão de onde se marca o limite é delicada e deve permanecer sem resposta por um bom tempo. Poder-se-ia argumentar que a linha do que é aceitável em uma música marca a fronteira, simplesmente, de atividades legais perante à lei – no caso, a defesa de supremacia branca ou o estupro são duas atividades que constituem crime.

Mas se a linha for esta, artistas como Eminem, Metallica ou Slipknot, gigantes do mundo da música, estariam sujeitos a repreensão total, pela grande quantidade de faixas que falam sobre assassinato ou violência ou até mesmo estupro. O Cannibal Corpse, uma das bandas de death metal mais bem sucedidas atualmente, tem inúmeras músicas que descrevem atos criminosos. O que separa a recriminação de MC Diguinho do resto dos artistas? É impossível não considerar que a diferença passe por questões de elitismo, afinal, se um artista de funk descrevesse relações tais quais Nabokov escreveu em Lolita, ele provavelmente seria reprimido. Por que o livro não é?

Para ficar no âmbito musical, o hit “Used To Love Her” do Guns N’ Roses, que descreve o assassinato de uma namorada, é aclamado. E a música já teve associação com casos reais no passado; em 2012, um californiano chamado Thomas Michael Wilhelm assassinou sua esposa pouco tempo depois de ter enviado trechos da letra para o celular da cônjuge. Por que MC Diguinho é recriminado e diversos outros artistas não? Seria possível que a resposta esteja no preconceito de que um artista de funk estaria realmente defendendo seus atos, enquanto um vocalista californiano de boa família esteja, claramente, apenas fazendo poesia?

MC Diguinho publicou uma resposta à polêmica de sua música, dizendo que não faria nada para ferir a honra e a moral das mulheres. E se o cantor realmente nunca concretizou uma atividade ilegal, a discussão ainda vai além. E a liberdade do eu lírico? Quando um compositor trata de algo em uma letra, ele está obrigatoriamente defendendo o ato? Quando se separa o que é incentivo e o que é poesia? Mesmo se a regra é separar pelo que é legal perante a lei, os eu líricos estariam sujeitos ao mesmo código penal que os artistas? O limite da liberdade da arte não é uma ameaça? Estas questões continuam sem resposta e é difícil imaginar uma decisão absoluta sobre isto, mas o que não se pode deixar de considerar é o precedente que a recriminação de MC Diguinho abre.

O fator que abriu a brecha para as polêmicas recentes vem do crescimento da música em streaming. Plataformas como o Deezer e o Spotify são empresas e, como tal, tem direito absoluto de estabelecer e implementar políticas próprias do que será aceitável, do mesmo modo que gravadoras e produtoras são responsáveis pela curadoria de seus artistas. O que abriu a discussão foi a facilidade de disponibilidade das músicas nos serviços. Agora, qualquer ato musical pode estabelecer um acordo rápido e criar uma página no Spotify com facilidade, o que abre portas para uma enxurrada de artistas que não passam por curadoria inicial alguma.

Por mais que a questão entre legal e ilegal, e opinião pessoal ou eu lírico, seja delicada e possivelmente impossível de se definir, no fim das coisas, a decisão de reprimir ou não um artista virá do público. Assim como foram manifestações online que chamaram atenção ao caso da letra de Mc Diguinho, o vídeo do funk em questão é recheado de comentários positivos no YouTube. E enquanto as plataformas de streaming executam as suas próprias políticas, o público também tem sua voz para incentivar, reprimir ou chamar atenção para diferentes formas de arte. 

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